29 dezembro, 2010

Terra Santa

Nelson José Cunha

Quem o via descendo com pressa a rua da escadinha, saltando degraus e exibindo equilíbrio de cabrito, prendia-se à cena e esquecia obrigações. Enquanto o campanário da igreja do Rosário chamava a missa das seis, o montanhês descia as escadas ao compasso dos sinos. Coreografia sem vacilos ou escorregões nas pedras ensaboadas pelo sereno madrugador.
Levava uma pequena maleta de viajante que, agitada no ar, garantia-lhe o prumo e o pão. Nela carregava a mercadoria requisitada pelos fiéis nas portas das igrejas de Ouro Preto.
Era pressa de negócio: A boa venda dependia da presença do dono na porta das igrejas e nos horários de missa. Corria para poder aproveitar a aglomeração na saída das missas.
Usava uma cartolina colada na maleta com os horários das celebrações e com o relógio de algibeira cronometrava os trajetos e o tempo gasto em cada parada. Otimizava o tempo como dizem hoje os consultores mais afetados pela ciência da Administração. Percebeu que as vendas eram melhores nesses horários.
Efeito conhecido nas igrejas do bispo Macedo onde Jesus toca o coração, escancara os bolsos dos fiéis e abre a goela do pastor.
Recém chegado à cidade, já conhecia suas ladeiras e atalhos e podia zunir por eles como um trombadinha em fuga. No pátio das igrejas, armava um tripé e abria nele a maleta da saúde.
Anunciava com voz piedosa sua chegada da Palestina de onde trazia a milagrosa terra do Santo Sepulcro de Jerusalém: Garantia de cura para todos os males deste mundo e do outro. Podia ser colocada dentro da caixa mortuária como sinal de devoção.
Deitava os saquinhos de celofane na tampa da mala, arrumados em ordem anatômica: os de cima para os males da cabeça, os do meio para os males do tórax e assim seguiam-se as fileiras exceto aquelas das aflições da alma e do sexo. Para estas, guardava as poções no bolso do paletó, ao agrado da pudica clientela. Eram poções caras e dependiam de uma conversa ao pé de ouvido para contornar a timidez dos interessados.
A terrinha vendida era vermelha, com granulação uniforme como se peneirada fosse, e era. Levava uma inscrição em árabe feita a nanquim que dava ao negócio a credibilidade e o efeito placebo requerido.
Quando perguntado sobre a tradução da inscrição, dizia num português enviesado:
- Mal abenturados os que non tem fé na terra onde ELE pisou.
- Será dos ímbios o reino da berdiçon.
Dizia com o dedo indicador apontando para o alto enquanto fazia menção de descobrir-se com o chapéu.
A grande vantagem do negócio religioso era e continua sendo imune ao PROCON. Caso não funcionasse, era culpa do consumidor e nunca do produto. Golpe de mestre que tem perdurado até hoje.
Kamel era católico ortodoxo por batismo e romano por conveniência. Não saía de casa sem um símbolo do pontífice bordado em parte destacada do único terno. Preto para parecer múltiplo, disfarçar proeminências e espaçar as lavagens. Durante a noite, na Pensão Vermelha, de porta trancada punha uns discos na vitrola com os lânguidos lamentos árabes para afugentar da soleira os vizinhos curiosos.
Todos saíam dos seus quartos e reuniam-se em protesto na cozinha da pensão. Com o volume da vitrola ao máximo, lixava um tijolo de barro vermelho e preparava mercadoria nova para o dia seguinte.
O milagreiro Kamel Kauer (*) começou assim a sua vida de comerciante próspero em Ouro Preto. Enriqueceu, casou-se com minha tia e assim pude conhecer esta história e muitas outras porque o meu tio turco não parou de produzi-las.

(*) Nome trocado porque não quero pagar direitos autorais nem atrapalhar quem usa até hoje a mesma matéria prima: Filossilicato Hidratado (Barro). Bom também para máscara facial, especialmente para quem tem cara de pau. NJC

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