18 fevereiro, 2013

Luto pela família Silva

Rubem Braga
A assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava deitado na calçada. Uma poça de sangue. A Assistência voltou vazia. O homem está morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos "Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito: João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise.
João da Silva - Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os Joões da silva. Nós somos os populares Joões da Silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva. Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados. Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos os imigrantes, mestiços. Somos os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam o nosso nome. É por engano. Os Silva somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pelas ruas e morremos. Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não usamos nosso nome de família. Usamos o sobrenome "de Tal". A família Silva e a família "de Tal" são a mesma família. E, para falar a verdade, uma família que não pode ser considerada boa família. Até as mulheres que não são de família pertencem à Silva.
João da Silva - nunca nenhum de nós esquecerá seu nome. Você não possuía sangue-azul. O sangue que saía de sua boca era vermelho - vermelhinho da silva. Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por baixo. Nossa família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família Crespi, a família Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a família Pereira Carneiro, todas essas famílias assim são sustentadas pela nossa família. Nós auxiliamos várias famílias importantes na América do Norte, na Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra, faz telha de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.
Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política.

(BRAGA, Rubem. Luto da família Silva. In: Para gostar de ler. 4. Ed. São Paulo, Ática: 1984)

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20/02/2013 - Fernando Gurgel disse...
As Chicas, ótimo grupo musical, cujas integrantes são oriundas de famílias de músicos(as), têm uma bela música sobre o Silva:

Um comentário:

Fernando Gurgel disse...

As Chicas, ótimo grupo musical, cujas integrantes são oriundas de famílias de músicos(as), têm uma bela música sobre o Silva:

Rap do Silva
Chicas

Era um domingo de sol, ele saiu de manhã
Pra jogar seu futebol, deu uma rosa para irmã
Deu um beijo nas crianças, prometeu não demorar
Falou para sua esposa que iria vir para almoçar

Era trabalhador, pegava um trem lotado
Tinha boa vizinhança, era considerado
E todo mundo dizia que era um cara maneiro
Mas todos o criticavam porque ele era funkeiro
O funk não é modismo, é uma necessidade
É pra calar os gemidos que existem nesta cidade
Todo mundo devia nessa história se ligar
Porque tem muito amigo que vai para o baile dançar
Esquecer os atritos deixar a briga pra lá
E entender o sentido quando o DJ detonar

Era só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família
É só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família

E anoitecia, ele se preparava
E pra curtir o seu baile que em suas veias rolavam
Pôs a melhor camisa, tênis que comprou suado
E bem antes da hora, ele já estava arrumado
Se reuniu com a galera, pegou o bonde lotado
Os seus olhos brilhavam, ele estava animado
Sua alegria era tanta ao ver que tinha chegado
Foi o primeiro a descer e por alguns foi saudado
Mas naquela triste esquina um sujeito apareceu
Com a cara amarrada, sua alma estava um breu
Carregava um ferro em uma de suas mãos
Apertou o gatilho sem dar qualquer explicação
E o pobre do nosso amigo que foi pro baile curtir
Hoje com sua família ele não irá dormir

Porque Era só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família
É só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família

Era só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família
É só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família