27 dezembro, 2015

Estorvo nas Raízes do Brasil

por Irajá Menezes, no Face
22 de dezembro de 2015
Ontem à noite, pros lados do Leblon, Chico Buarque avistou-se com o brasileiro cordial.
Chico manteve a calma, não perdeu a elegância. Na verdade, não houve surpresa. É que Chico conhece como ninguém o brasileiro cordial.
Não apenas porque foi seu pai quem explicou que bicho é esse. Isso, por certo, ajudou.
O fato é que o poeta de olhos cor de ardósia não é de contar vantagem, mas todo mundo sabe que percebe de longe a cordialidade. Afinal foi ele quem descreveu com mais detalhes o brasileiro cordial.
O brasileiro cordial é aquele que fotografa com a câmera cujo foco toda lírica solapa.
Aquele que amassou as rosas, queimou as fotos e beijou Lily Brown no altar.
O brasileiro cordial é a voz do dono. É o dono do bosque onde todo balão caía, toda maçã nascia (e o dono do bosque nem via). Aquele que deve a Deus seu éden tropical, mas pode vender. Quanto você dá?
Foi o brasileiro cordial que inventou de inventar toda a escuridão. Que inventou o pecado.
Foi ele que obrigou Angélica arrumar o quarto do filho que já morreu.
E esqueceu-se de inventar o perdão.
O brasileiro cordial é um dos pagantes, bêbados e febris, exigindo bis quando Beatriz despenca do céu. É um dos homens tristes, à frente de uma mulher feliz, enrustido, com cara de marido. O bruto da brasa na coxa de Ana de Amsterdam. O japonês trás de mim. É ele quem bate, cospe, joga bosta na Geni.
Ele é o noivo correto, o empregado discreto, o macho irrequieto, o funcionário completo, fala de cianureto, tem um caso secreto, um velho projeto, às vezes cede um afeto, quase que fez fortuna. Até que a morte os una, os brasileiros cordiais armaram tocaia lá na curva do rio. Puseram no tronco, talharam o corpo, furaram os olhos do escravo que no engenho enfeitiçou Sinhá.
Para ele vivem as mulheres de Atenas. É ele que faz mil perguntas que em vidas que andam juntas ninguém faz. Que conta as horas nas demoras por aí.
Tatuagem no braço e dourado no dente, assim como veio partiu não se sabe pra onde. É o aborígene do lodo, o homem que vem aí. O malandro regular, profissional, com aparato de malandro oficial, candidato a malandro federal, com retrato na coluna social, com contrato, com gravata e capital.
O brasileiro cordial.
O brasileiro cordial reclama se alguém agoniza no meio do passeio público, porque atrapalha o tráfego. Serve a bebida amarga do cálice de vinho tinto de sangue.
É a ele que agradecemos: "Deus lhe pague" por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir, por me deixar respirar, por me deixar existir. Deus lhe pague, brasileiro cordial.
Obriga o jumento a levar o pão, a farinha, feijão, carne seca, limão, mexerica, mamão, melancia, areia, cimento, tijolo, a pedreira até quando a carcaça ameaça rachar.
É o da pesada, responsável pela omissão um tanto forçada. Largou o guri no mato, rindo, lindo de papo pro ar. Estampou na manchete, retrato com venda nos olhos, legenda e as iniciais.
Fez alvoroço demais, o brasileiro cordial.
Fez o faz-de-conta terminar numa noite que não tem mais fim.
Subtraiu a pátria em tenebrosas transações.
Acendeu a fogueira que queimou o samba, a viola, a roseira. O brasileiro cordial é a roda-viva que carrega o destino pra lá.
O brasileiro cordial não gosta do Chico. Mas a filha gosta.
Mesmo que não se alimente o seu gênio ruim, encontra motivo pra injuriar.
É um eterno devedor. Deve favores ao compadrio. Deve honras ao padrinho. Por isso sai na rua, sedento para saldar as dívidas.
Chico escreveu um livro sobre ele. E mostrou que o brasileiro cordial está no asilo, nos últimos dias de vida. Sua memória já se embaralhou. Perdeu a conta.
O brasileiro cordial chora o leite derramado. Tem medo que aquele trem de candango, formando um bando de orangotango, não seja apenas parte de um sonho medonho e queira mesmo lhe pegar.
Será que é por isso que ataca?
Se há alguém que sabe quem é o brasileiro cordial, esse alguém é Chico Buarque de Hollanda.
Os playboys fascistas que o aborreceram, ao contrário, não fazem a menor ideia de quem seja Chico Buarque de Hollanda. Se soubessem não pagariam mico em rede nacional.
O brasileiro cordial cansa. É tanta mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça.
Mas... vai passar.
Enquanto isso a gente vai tomando que, também, sem a cachaça, ninguém segura esse rojão, não é?

Ver também:
O BRASILEIRO CORDIAL (humoralmente correto)

29/12/2015 - Atualizando ... 
Os ignorantes do Leblon, por Gregorio Duvivier

04/01/2016 - Atualizando ... 
"Não enche o saco do Chico", marchinha de carnaval de Vitor Velloso e Marcos Frederico
Diário de Pernambuco, notícia c/ vídeo

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